- ATENÇÃO, os fatos descritos nesta série de artigos seguem pesquisas apuradas na internet, tendo como base de dados reportagens da época, investigações policiais e denúncias do Ministério Público, e podem incomodar os leitores mais sensíveis –
Araceli Crespo, que aos 8 anos de idade teve a vida interrompida de
uma forma absurdamente brutal e sem maiores consequências para os autores
- Ediwilson dos Santos –
Numa
manhã do dia 24 de maio de 1973, o estudante Ronaldo Monjardim caçava
passarinhos em um terreno com mato já alto pelo abandono, quando viu à sua
frente algo que o iria assombrar pelo resto da vida. Era o corpo de uma
criança, sem rosto e o restante do corpo já entrando em estado de decomposição.
O garoto voltou para casa correndo, num fôlego só, para avisar o pai, que
retornou com o filho ao local, sentindo, durante todo o trajeto, um frio no
estômago, talvez já prevendo o que de tão terrível estava por vir.
O
corpinho visivelmente brutalizado e deixado ali, abandonado, em um terreno aos
fundos do Hospital Infantil de Vitória (ES), era o de uma menina com apenas
oito anos de idade, que havia seis dias desaparecera no caminho da escola para
casa e os pais e parte da polícia da capital capixaba estavam procurando
desesperadamente. O desdobramento do caso ganharia repercussão internacional, descortinaria
os desmandos da ditadura militar e alteraria leis brasileiras.
Araceli
Cabrera Crespo era filha do espanhol Gabriel Sanchez Crespo e da boliviana Lola
Cabrera Crespo. A família tinha ainda o menino Carlinhos, de 13 anos, e morava
em uma casa no Bairro de Fátima, em Serra, divisa com Vitória. Todos os dias, após
almoçar, Araceli saía de casa e ia sozinha para a escola, de ônibus, num
trajeto que não demorava mais que 20 minutos. Era seguro para a menina, porque
os pontos de embarque e desembarque ficavam próximos dos destinos dela
(casa-escola-casa).
No
dia 18 de maio de 73, uma sexta-feira, Araceli saiu de casa para ir à escola e nunca
mais seria vista com vida pelos pais e irmão. Investigações feitas pela polícia
comprovam que a menina assistiu às aulas, mas saiu um pouco mais cedo, às
16h30, à pedido da mãe. Cerca de meia hora depois, ela foi vista por um garoto
da mesma escola no ponto de ônibus, que ficava em frente de um bar, brincando
com um gato. Depois disso, tudo é especulação.
VERSÕES
Entre
as versões mais aceitas, duas foram investigadas pela polícia. Uma delas diz
que depois de ser vista pelo colega de escola no ponto de ônibus, Araceli teria
ido em direção a um prédio de apartamentos no centro da cidade, o Apolo, entregar
a pedido da sua mãe um envelope a um dos moradores, identificado como Paulo
Constanteen Helal. Na outra, a menina teria sido avistada e convidada pelo
mesmo homem, conhecido em toda Vitória como Paulinho Helal, a entrar em seu
carro, sob o argumento de que ele a levaria para a casa dela.
Independentemente do que
ocorreu, Araceli acabou caindo em uma armadilha mortal. Depois de ser raptada,
ela foi brutalmente estuprada. Em seu corpo foram encontradas lacerações
produzidas por dentadas nas regiões da vagina, peito e barriga. Depois de ser
morta, o seu rosto foi totalmente corroído por ácido, uma tentativa dos
assassinos de dificultar a identificação do cadáver. No decorrer das
investigações policiais e da CPI aberta na Câmara Federal anos depois, ficou
evidente que a menina foi abusada por Paulinho Helal e seu amigo Dante de
Barros Michelini, o Dantinho. Os dois eram de famílias riquíssimas e com muita
influência na política do Espírito Santo. Também eram famosos pelas festas que
davam aos amigos da alta sociedade capixaba, regadas com muita bebida e drogas.
Outra fama dos amigos em Vitória era de pedófilos. De acordo com denúncias
colhidas no decorrer das investigações, eles costumavam rondar portas de
escolas para seduzir, raptar e estuprar crianças, certos de que a polícia não
iria importuná-los depois.
Uma viciada
em drogas ouvida pela CPI da Câmara, que teria testemunhado todo o martírio de
Araceli, disse que estava no apartamento do edifício Apolo consumindo drogas e
álcool com Dantinho e Paulinho quando Araceli chegou para entregar o tal
envelope. E foi quando tudo começou. Eles teriam dado a ela uma dosagem muito
alta de LSD, uma potente droga alucinógena, e a estuprado violentamente durante
horas, até perceberem que ela havia parado de respirar.
Araceli já estava morta, mas
os amigos, de tão drogados que estavam, não perceberam e levaram o corpo da
criança até o hospital, onde foi constatado o óbito. Não fosse o dinheiro e
influência, o caso poderia ter terminado alí, com a prisão deles. No entanto,
pagaram o funcionário de uma funerária para retirar e levar o corpo até um
local indicado por eles. Meses depois, este mesmo agente inaugurou a própria
funerária.
O local indicado para levar o
corpo era um sobrado da família de Dantinho. Embaixo, Dante (pai) mantinha um
bar e, acima, Dante (filho) reunia amigos para servir muita bebida e muita
droga. O corpo da menina foi colocado em um freezer. E lá permaneceu por três
dias. Na terça-feira, Paulinho Helal levou a mulher que disse ter testemunhado
o assassinato até a garagem do sobrado, abriu o porta-malas do seu carro e
mostrou o corpo de Araceli, com o rosto já corroído pelo ácido, para perguntar
a ela se era necessário desfigurar ainda mais o que sobrou.
Na outra versão aceita, o
envelope também faz parte da investigação. Só que a encomenda teria sido
entregue já no bar, que ficava embaixo do casarão. O que se seguiu teve o mesmo
roteiro diabólico, mas com um martírio ainda maior de Araceli, que teria
permanecido em cárcere privado por dois dias, sendo seguidamente abusada,
torturada e drogada, até morrer de overdose. Nesta versão, foi envolvido o pai
de Dantinho, que era o dono do imóvel, acusado de ter conhecimento sobre a
presença da menina no prédio e a brutalidade que ela estava sofrendo.
Os acusados de
terem praticado a barbárie com Araceli: Dantinho, Paulo Helal e Dante pai
O CORPO ABANDONADO
Depois
de matarem e desfigurarem o rosto de Araceli, os assassinos jogaram o corpo no
terreno de mato alto atrás do Hospital Infantil da cidade. E lá permaneceu até
ser encontrado pelo garoto Ronaldo Monjardim, que anos depois tornou-se
policial.
Depois
de seis dias sem qualquer notícia da filha, o pai de Araceli foi chamado a
verificar o corpo encontrado e o reconheceu, com base em uma mancha de nascença
em dos pés. No dia seguinte, ele voltou ao IML e disse que havia se enganado. O
corpo da criança permaneceu por mais de um ano no freezer do necrotério até que
um exame mais detalhado confirmou tratar-se, realmente, de Araceli Cabrera
Crespo, sendo finalmente enterrado.
REPERCUSSÃO E DITADURA
A
cobertura intensa da imprensa brasileiro sobre o caso Araceli durou anos.
Dantinho, seu pai e Paulinho chegaram a ser condenados, mas as duas ricas
famílias contrataram os melhores e mais caros advogados e conseguiram a
absolvição por falta de provas materiais. No início dos anos 70, os generais
estavam se revezando na Presidência da República e quem tinha proximidade com
os militares, estava blindado. E as famílias Michelini e Helal possuíam muita
influência. E graças a ela, provas foram desaparecendo e chefes de polícia
foram retirados do caso.
Nos meses em que se
prolongaram as investigações, testemunhas e personagens do processo foram
mortas em circunstâncias estranhas, como o porteiro do prédio Apolo e um policial
que estava obtendo provas convincentes do envolvimento dos amigos pedófilos. A
morte brutal de Aracelli Crespo ganhou os noticiários internacionais e se
manteve vivo até meados da década de 80, quando um desembargador absolveu os
réus.
O ENVELOPE DA MÃE
As
duas investigações realizadas do caso, pela polícia do ES e pelos deputados
federais, apontaram que o tal envelope comentado nas duas versões do crime
continha cocaína, encomendada por Paulo Helal, que era “cliente” da mãe de
Araceli, Lola, que seria uma viciada e traficante da droga, com ligações na
Bolívia, seu país de origem. Por conta deste detalhe, a morte da menina ganha
ainda mais contornos revoltantes, já que ela estaria sendo usado pela mãe como
“mula” do tráfico.
Essa
denúncia ficou mais ainda suspeita depois que Lola deixou o Brasil, pouco mais
de um ano após a morte de Araceli, retornando sozinha para a Bolívia antes
mesmo do desfecho do processo judicial contra os acusados pela morte da sua
filha.
De
todos os personagens do caso, estão vivos os dois principais acusados, Dante
filho e Paulo Helal, o irmão de Araceli, Carlos Crespo e a sua mãe, Lola, que
na Bolívia casou-se novamente e nunca voltou para o Brasil.
HOMENAGEM
O
dia do desaparecimento de Araceli Cabrera Crespo, 18 de Maio, foi declarado
pelas autoridades brasileiras como o Dia Nacional de Combate ao Abuso Sexual
contra Crianças e Adolescentes, instituído desde o ano 2000.
O policial Ronaldo
Monjardim, que em 73 tinha 15 anos, voltou em 2019 ao local onde encontrou o
corpo de Araceli